3  Introdução

As mudanças climáticas têm alterado os regimes de temperatura e pluviosidade global, impactando a fenologia, o comportamento e a distribuição geográfica das espécies (Antão et al., 2022; Hannah, 2021; IPCC, 2022; Mccain & King, 2014; Vitasse et al., 2018). As espécies têm sofrido mudanças nos limites das suas distribuições para localidades mais temperadas e de maior altitude (Abreu-Jardim et al., 2021; Gillings et al., 2015; Lemes et al., 2014; Nabout et al., 2011). Essas mudanças nas distribuições geográficas modificam a composição de espécies das comunidades ecológicas, causando disrupção de interações inter-específicas (Memmott et al., 2007) e alterando a distribuição de atributos funcionais (Bender et al., 2019), comprometendo o provimento, regulação e suporte de funções, estrutura e dinâmica ecossistêmica (Montoya & Raffaelli, 2010).

O impacto das mudanças climáticas não é uniforme na superfície do globo, uma vez que a vulnerabilidade das espécies depende da sua exposição e sensibilidades às mudanças ambientais (Foden et al., 2019; Williams et al., 2008). A exposição é caracterizada pela forma como as mudanças globais, regionais e locais atuam diretamente nos organismos pela interação entre variáveis climáticas, bióticas, pedológicas, hidrológicas e topográficas, que configuram as condições microclimáticas e dos habitats onde as espécies vivem. Por outro lado, a sensibilidade depende da plasticidade fisiológica, morfológica e comportamental das espécies, seu potencial de adaptação às novas condições ambientais e capacidade de dispersar para áreas adequadas ambientalmente.

Nessa contexto, dependendo do grau de exposição, as espécies podem continuar nas suas localidades ou buscar áreas adequadas, dependendo da velocidade com que o clima muda local e regionalmente (Loarie et al., 2009). Locais com alta velocidade climática possuem alta taxa de mudança local ou baixa diferença climática em relação ao entorno. Nesse cenário, as espécies precisam se locomover por maiores distâncias para encontrar áreas adequadas. Locais com baixa velocidade climática possuem baixa mudança climática ao longo do tempo ou alta variabilidade climática no entorno, possibilitando a manutenção na localidade ou a busca por regiões adequadas em localidades próximas (Souza et al., 2023). Assim, as espécies necessitam de uma rede de localidades não somente climaticamente adequadas, como também com baixa resistência à movimentação dado o uso e cobertura do solo (Borges & Loyola, 2020; Mantyka-pringle et al., 2012).

Os estudos sobre os impactos das mudanças climáticas na distribuição da biodiversidade têm como base modelos que combinam informações sobre a distribuição das espécies e dados de projeções climáticas para diferentes períodos de tempo (Araújo et al., 2019). Essas projeções climáticas utilizam modelos globais e regionais, possibilitando a identificação de áreas mais vulneráveis, refúgios climáticos e a projeção dos impactos futuros (Abreu‐Jardim et al., 2023; Terribile et al., 2012). No entanto, os modelos climáticos fornecem dados em escalas regionais ou como interpolações em baixa resolução (Fick & Hijmans, 2017; Karger et al., 2017; Lima-Ribeiro et al., 2015), limitando o diagnóstico e desenvolvimento de estratégias de mitigação em escalas mais locais, onde as ações devem ser desenvolvidas efetivamente. Uma abordagem complementar aos modelos climáticos, é a utilização da topografia, geodiversidade e aspectos fisiográficos (Anderson et al., 2014; Lawler et al., 2015; Theobald et al., 2015) para diagnosticar, mapear e desenvolver soluções para a conservação em face às mudanças climáticas.

Nesse sentido, a geodiversidade da paisagem, caracterizada pelo conjunto de variáveis abióticas da superfície e subsolo terrestre (ex. topografia, geologia, pedologia e hidrologia) (Gray, 2004), tende a ter baixa taxa de mudança no intervalo de tempo factível para ações de mitigação das mudanças climáticas (Dobrowski, 2011; Lawler et al., 2015; mas veja Gill et al., 2015). Essas variáveis são componentes dos fatores determinantes de microclimas locais, como a superfície que mais recebe radiação solar, as posições no relevo mais expostas a ação de ventos, o direcionamento de ventos frios, o acúmulo de umidade e a retenção de água no solo (Dobrowski, 2011). A interação entre a atmosfera e a topografia resulta em topoclimas, que tendem a ser relativamente desconectados do clima regional. Os locais onde o topoclima permite a manutenção das características microclimáticas, independente das mudanças regionais, têm sido definidos como locais potenciais para refúgios microclimáticos (Ashcroft et al., 2012; Dobrowski, 2011). Além disso, locais com maior complexidade topográfica e amplitude altitudinal proporcionam maior variabilidade de condições ambientais para as espécies (Janzen, 1967; Lawler et al., 2015; Rahbek et al., 2019; Tukiainen et al., 2019). Desse modo, o potencial para atuar como refúgio microclimático e a maior variabilidade microclimática no entorno reduz a velocidade de mudança climática localmente.

O entendimento dos impactos das mudanças climáticas localmente necessita da compreensão dos seus impactos nas dimensões de biodiversidade, clima e geodiversidade, uma vez que todas essas variáveis se retroalimentam. Locais com maior geodiversidade são potencialmente mais resilientes às mudanças climáticas regionais tanto por amenizarem as mudanças microclimáticas locais, devido ao descolamento do topoclima com o clima regional, quanto pela disponibilidade de maior variabilidade microclimática (Dobrowski, 2011; Lawler et al., 2015). Além disso, locais com maior geodiversidade têm sido indicados com potencial de suportarem maior biodiversidade, em diferentes escalas espaciais (Antonelli et al., 2018; Fine, 2015; Rahbek et al., 2019; Tukiainen et al., 2019; Vernham et al., 2023). Portanto, a geodiversidade tem surgido como uma alternativa para o desenvolvimento de estratégias de mitigação das mudanças climáticas, sobretudo pelos avanços teóricos e operacionais (Anderson et al., 2014, 2023; Dobrowski, 2011; Lawler et al., 2015; Tukiainen et al., 2023), como a maior disponibilidade de informações acessíveis em escalas espaciais finas (Cavender-Bares et al., 2020; Zarnetske et al., 2019). Essa abordagem tem sido classificada como “conservar o palco da natureza” (do inglês conserving nature’s stage) (Anderson et al., 2014, 2023; Anderson & Ferree, 2010; Lawler et al., 2015). Esse “palco” seria onde os “atores” da biodiversidade e as interações operam. A proposta é que a composição das comunidades provavelmente mudará ao longo do tempo, mas a manutenção das características abióticas que promovem e mantêm a biodiversidade permitiria a promoção da diversidade biológica, mesmo que os componentes originais se modifiquem.

Além do impacto das mudanças do clima, as paisagens naturais têm sido severamente degradadas pela mudança no uso e cobertura do solo em decorrência da atividade antrópica (Cordier et al., 2021; Newbold et al., 2015; Semenchuk et al., 2022; Winkler et al., 2021). A perda e fragmentação de habitat causada pelo desmatamento e conversão da vegetação nativa estão entre as principais causas de ameaça de extinção das espécies (Díaz et al., 2019; Harfoot et al., 2021; Pardini et al., 2018), tanto por reduzir a capacidade de suporte populacional quanto por diminuir a permeabilidade, alterar as dinâmicas metapopulacionais e a riqueza das comunidades (Chase et al., 2020; Haddad et al., 2015; Hanski & Ovaskainen, 2000). Além disso, a perda e fragmentação de habitat reduzem a capacidade das espécies de se movimentarem na paisagem na busca por condições climáticas adequadas, aumentando a velocidade da mudança climática nas paisagens mais degradadas. Portanto, estratégias adequadas de conservação dependem de abordagens integrativas que considerem esses efeitos múltiplos e sinérgicos das mudanças globais sobre a distribuição das espécies (Díaz et al., 2019; Sirami et al., 2017).

Considerando a abordagem de utilizar a diversidade do meio físico e o contexto da paisagem para avaliar o impacto do clima na biodiversidade, nós mapeamos locais que são mais resilientes às mudanças no clima no Brasil, com foco em ecossistemas terrestres. Essa abordagem possibilita a busca por áreas que têm maior potencial de manter a biodiversidade no futuro, pelo mapeamento da heterogeneidade microclimática e da conectividade local entre ambientes naturais na paisagem. Nessa proposta, áreas resilientes são definidas como aquelas com alta diversidade de condições abióticas superficiais e do subsolo, que possuem baixa degradação ambiental e são conectadas na paisagem Anderson et al. (2023). Nossa análise é derivada de um mapeamento anterior conduzido na América do Norte Anderson et al. (2023) e mostra relevância por refinar a metodologia para ambientes tropicais e regiôes biodiversas, como é o caso do Brasil. Por usar bases de dados globais combinadas com bases nacionais e transnacionais, nossa análise permite a replicação para diferentes regiões e contextos. Até o momento, ainda não estão disponíveis mapeamentos semelhantes de áreas resilientes para regiões tropicais e biodiversas, como é o caso do Brasil.